L   E   M   B   R   A   N   Ç   A   S

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DONA ZOBÉIDE

 

 

Que nome lindo!

Enche-me a boca falar seu nome!

Enche-me o coração de saudade!

Enche-me o peito de orgulho por ter sido seu aluno!

Enche-me a alma o respeito pela sua imagem, sua figura bonita, doce, meiga, austera, bondosa, a um tempo simples e majestosa!

Meio Mãe, meio Professora.

Contradição? Não! É a Primeira Professora que marca a alma da criança com seu carisma! Dona Amália, Dona Yone, Dona Olinda, Dona Maria do Carmo! Todas elas tinham um pouquinho da Dona Zobéide. Meus filhos que o digam!

 

A PRIMEIRA AULA

 

- Dona Zobéide! Acabei!

- Escreve de novo!

- Dona Zobéide! Acabei!

- Escreve de novo!

- Dona Zobéide! Acabei!

- Enche a folha inteira com teu nome inteirinho! Depois eu vou ver!

Pobre Dona Zobéide! Também tinha o direito de perder a paciência!

Lá fiquei enchendo a folha inteirinha com meu nome inteirinho em cada linha do caderno: Braz Alves de Araújo!!! Era assim que eu me chamava.

A cada linha olhava para trás para ver se o Aldo ainda estava lá me esperando!

Era meu primeiro dia de aula na “Escola Rural da Fazenda Martineli”, em Monte Alto—SP.   A Escola de Dona Zobéide! Ano de 1.935! Pena que não me lembro o dia!

O Aldo era meu irmão “grande” que foi me levar à Escola.

Nós morávamos em outro sítio a uns quatro ou cinco quilômetros de distância. Não dava para ir sozinho. Ainda mais no primeiro dia! Mas, o Aldo não foi somente por amor ao irmãozinho. Foi também por amor, sim, mas pela irmã da Professora...! Nunca vou me esquecer dos recadinhos que levava para as irmãs da Professora, a Estela e a Nair!

 

Recados do Aldo e do Urias, o outro irmão. Mas, deixa pra lá... Isso é outra história!

Cansei de escrever meu nome! Enchi a página. Fui mostrar para Dona Zobéide, cheio de orgulho! Satisfeito, ouvi os elogios. Já sabia escrever meu nome! Muitos outros ainda não sabiam!

Terminou a aula. Corri para o Aldo! Voltamos para a casa. Amanhã tem mais!

Estrada, mato, cafezais, estrada de novo...Chegamos em casa. Sítio do seu Oberdano!

Mãe! Foi muito gostoso! Dona Zobéide é muito boa! A Nair e a Estela também! Gostei mais de conhecer a “Gé“, a outra irmã da Professora! Ela é “gozada”! É diferente! Mas, gostei dela! Ela gosta da gente! Mãe! Porque que a Gé é “diferente”?

 

O DONO DO MUNDO

 

Hora do recreio!

Íamos todos para a sombra da enorme árvore do quintal. Era uma linda cerejeira! Nunca mais vou ver outra igual! Corríamos, brincávamos. Sentada sobre uma grande mesa de tábuas, Dona Dáfine, irmã da Professora, contava histórias. A um lado, a Gé falava bobagens e nós nos divertíamos.

Alguém gritava: Lá vem o JOTAEME !!!

Corríamos todos para ver de perto o JM e ouvir as suas histórias!

O JM era o Dono do Mundo!

Rasgado, coberto de andrajos, chapéu velho na cabeça! Nas costas, um enorme saco cheio de papéis velhos!

- O que você tem nesse saco JM?

- Não é coisa para criança! É tudo muito importante! São as Escrituras do Mundo!

Não posso perder! Sem isso, como vou provar que o mundo é meu?

JM era o Dono do Mundo! O homem mais rico e mais feliz que já vi! Era, realmente, o Dono do Mundo! Nada lhe faltava! De nada mais precisava! Suas eram as terras, os rios, os mares, as florestas, as plantas e os frutos! Seu era o ar puro da serra e o perfume das flores! Seu era o canto dos pássaros e o uivo das feras! Seu era o frescor da aragem e o sopro dos ventos! Era seu o pó da estrada e o banhar da chuva!

 

Era seu o amor dos homens e o carinho das crianças!

O que lhe faltava? Nada! Ele era o Dono do Mundo! Era o homem mais feliz do mundo!

Pudera! Além de ter o mundo a seus pés, ele tinha o amor da Gé!  A Gé gostava dele!

É claro! Quem não gostava do JM? Ele distribuía amor, simpatia, alegria! As crianças o adoravam. Os grandes o protegiam. A Gé o amava!

- Gé! Você vai casar com o JM só porque ele é Dono do Mundo?

-Não! Eu gosto dele! Não é por “interesse”! Não quero parte do mundo dele! Não quero sua riqueza! Gosto dele porque ele é bom, é alegre, é amigo! Perto dele eu sou feliz!

Feliz de quem, só com a presença, já leva felicidade aos outros!!!

Que saudade do JM!!!

Que saudade da Gé !!!

 

A PRIMEIRA COMUNHÃO

 

Hoje não “tem” Aula! “Tem” Festa! “Tem” Missa! “Tem” Primeira Comunhão.

Dona Zobeide ensinava tudo!  Até religião!

Preparou a turma para fazer a Primeira Comunhão.

Hoje, em vez de Aula, a Missa, a Festa de Primeira Comunhão.

Toda a molecada com calças e camisas brancas. Tênis brancos.

Eu também, compenetrado, fiz a Primeira Comunhão! Calça branca, camisa branca que a Mamãe fez...Pés no chão!

Não sei quem me levou nesse dia.  Chegamos atrasados. Andando quatro ou cinco quilômetros, a pé, para chegar à Escola, precisava lavar os pés para calçar os tênis para a Primeira Comunhão!

Chegamos atrasados. Não deu tempo de calçar os tênis! Corri para a fila. Fiquei descalço mesmo!

Missa, Comunhão, Fotografia, Abraços, Doces, Chocolate, etc. E eu, descalço! Só Eu! Que pena! Mas, foi bom! Assim, nunca mais esqueci do dia da minha Primeira Comunhão! Na Escola da Fazenda Martineli! Na Escola de Dona Zobéide!

Nunca mais a vi. Mas seu rosto, sua figura, nunca saíram de minha mente! Nunca mais sairão! ZOBÉIDE! Que nome lindo! Soa com música em meus ouvidos!!!

 

(Santos, 05/09/99)